Nathalia Mello


GESTO 16/5

I Atividade

Maquete com dedos das mãos


She is outside the terms of the polis, but she is, as it were, an outside without which the polis could not be
Judith Butler

Neste momento de encanto quando você está se recordando de alguma coisa no mundo, ou alguma coisa no mundo está se recordando de você, você não está alucinando ou inventando alguma coisa a partir do nada, mas dos próprios pensamentos inconscientes
Avery F. Gordon

Após a trajetória que ocorre principalmente como uma fissura em tempo, eu me deito, meu dedo está dentro do vaso protegendo a água e, simultaneamente, o vaso me provoca dor; o cotovelo é o principal suporte, me recordo do pulso esquerdo suportando o cotovelo direito. Se não fosse o pulso esquerdo, a gravidade forçaria minha aproximação de máxima materialidade em direção ao cotovelo direito. A caixa toráxica é um arco. Levanto e caminho cuidadosamente com o vaso. A água do outro vaso está agora no chão e começo a falar com água na minha boca. Me abaixo guiada pela mão que segura o vaso, estruturalmente guiada pelo vaso: um objeto que eu cubro com solo. Construo uma cadeira de balanço e, desta, observo o outro vaso, esquecido atrás. A parte superior do corpo é um arco, “I’m making sure the wheels are lubricated, it is the social oil”[i]. Deslizo até o vaso, flecha; o corpo é arco. Círculo eu, circulando o vaso. Quão distante e seguro? Qual distância eu posso estabelecer? Meço quão acessível é o que há debaixo (do chão do estúdio) no qual ajo. Será permitido esgarçar uma fissura (não quero estar sempre em exílio). O chão do estúdio é muito duro. Escorrego. Eu trouxe minha própria lama; lá estarei, fácil, underground.

II Processo

Leio e sublinho frases de O Mar do Tempo Perdido de Gabriel Garcia Marquez:


“O mar ia se tornando áspero, começava a despejar sobre o povoado um lixo espesso, e poucas semanas depois tudo estava contaminado  por seu humor insuportável”
“Tomar café”  
“Minha última vontade é que me enterrem viva”
“Quero morrer com a certeza de que me colocarão de baixo da terra”
“O solo era outra vez árido e duro como um tijolo”
“Os ossos se haviam tornando salientes nas articulações e ela tinha o mesmo aspecto de terra arrasada que sempre tivera”
“Tenho pedido sempre que me anunciem a morte com a devida antecipação, para morrer longe deste mar”

TEXTO 7/9

I Documento

A família conversa em tcheco e inglês com as visitas; penso como seria estranho se todos  só falássemos da árvore que sacode seus galhos lá fora, se despedindo do longo verão, ou se nem falássemos; e se todos só olhássemos lá para fora? É presença? Estaríamos presentes? Falam de quando Roland se perdeu enquanto a família esquiava em algum lugar, não entendi, não tenho foco. Roland foi parar em outra montanha. Oh God. Terrifying. Um menino de 10 anos. Alex recorda, foi no ano de 1994, quando certa coisa assim e tal acontecia.
Tive pânico ontem antes de dormir porque, depois de uma semana de caminhadas que não dão espaço para o pensamento, voltei para a cidade, Cambridge, e tenho que comprar uma coisa na qual eu possa digitar com apoio da Microsoft e essa coisa tem que ser leve, a coisa anterior era pesada, segunda mão, era boa para editar videos, fotos, a coisa no futuro tem que ser leve, mas o que eu mais preciso agora é dormir nesse presente, nesse colchão maravilhoso, quando eu chegar no Rio eu vou jogar meu colchão fora, o colchão novo certamente me trará possibilidades para noites de sono profundas, devastadoramente profundas. Reflito, adoro dormir noites profundas.

O presente é definitivamente uma ilusão e um trauma por segundo. E o trauma é a tentativa de conhecer um outro, uma outra coisa que, obviamente não vai nos deixar referenciar ou projetar. Com o passar dos anos a família vai preferindo contar os traumas do que se encontrar esmagada entre a pressão de medo do futuro e pavor do passado. O trauma é o desespero da constante passagem do tempo através do presente.

ATRITO 16/7

I Resposta

Meu gesto, que não sei exatamente qual, está sempre enganchado ao chão. Se é de concreto, se é terra ou se é chão de estúdio. É exatamente isso que estou verificando, se sua reação ao corpo irá provocar atrito, ou melhor, o quanto de atrito irá provocar.  

Passo por um campo onde a terra foi remexida por uma máquina e sempre imagino um corpo sob, sobre, mais ou menos sob, mais ou menos sobre.

A força que pressiona o corpo contra o chão é o que te faz levantar. O quanto de força reflete diretamente nos quadris. O sacro é osso em forma de borboleta.  Nem o fogo tampouco água poderiam destruí-lo.

A força que pressiona teu corpo contra o chão é o que te faz levantar. O quanto de força investida é diretamente proporcional ao atrito que o chão de cimento propõe, o chão de terra propõe ou o chão de estúdio.

A verificação antecipada do lugar de presença (?) (área nebulosa) pressupõe uma maneira de agir no futuro. Uma recusa, um enfrentamento. O chão atrapalha, favorece. É a partir do chão que entendo se o gesto, esse que não sei exatamente qual é, será horizontal, vertical, se vai flutuar. É do chão que com 2, 3 até 4 apoios (nunca consegui mais nem menos apoios do que isso até hoje) se inicia um processo de suspensão. Há também momentos de total adesão - ao que alguns podem chamar “deitar”. Momentos de luta e resistência, alguns chamam “ficar de pé”. Todas as outras decisões se desdobram daí.

ROTEIRO 31/7

I Instruções

É o devir que faz, do mínimo trajeto ou mesmo de uma imobilidade no mesmo lugar uma viagem; e é o trajeto que faz do imaginário um devir. Os dois mapas, dos trajetos e dos afetos, remetem um ao outro.
Gilles Deleuze


Para ser filmado em casa

Camera no tripé

Compra-se uma revista de corte e costura com moldes feitos de um papel com textura de papel de pão, a mão arrasta dele um som áspero. Quem sabe os pontilhados e setinhas que apontam uma maneira de lidar com o tecido, já não apontam também uma prática? Estar no presente a partir daí.

Camera na mesa de pé amarelo

A última pergunta de pesquisa: como falar sob a superfície da terra? Estar no presente a partir daí.
Camera na/o ? ou gravador de áudio

Já tendo atestado uma ou duas respostas convicentes -  falar debaixo d’água, debaixo terra, cavar um buraco, cobrir o corpo com terra, ou falar debaixo de um tapete - prevejo uma ou duas setas apontadas para uma questão corrente. Corrente como água do rio, que não pára de correr, por trechos agressiva, em outros corrente água que parece estar imóvel: A fala é mais forte na infância? Quando ainda não se sabe o que dizer? A fala é o que mede a idade? Como falar sobre a superfície da terra?


FRACASSO 7/8

I Frase (para imprimir em todas as páginas do caderno)

Fala que falha

II Ação (extrato da performance Abscene)

Falar com água na boca


O ser da performance como a ontologia da subjetividade proposta aqui passa a existir através do desaparecimento. Performance ocorre durante o período de tempo que não será repetido. Pode ser performar novamente, mas essa repetição a marca como diferente. O documento de uma performance é apenas um estímulo à memória, um encorajamento para que a memória se torne presente.
Peggy Phelan



[i] Essa frase é também Avery F. Gordon, do mesmo livro que a citação prévia foi extraída, Ghostly Matters: Haunting and Sociological Imagination. Publicado em Londres pela Minnesota Press em 1997.

Eu, Nathália Mello sou diretora teatral graduada pela UFRJ (2007), doutoranda em Processos Artísticos Contemporâneos (UERJ) e mestre em Dança-Teatro: O Corpo em Performance pela Trinity Laban University (2010), pós-graduada em Dança pela mesma instituição (2009).  Experiência revertida em valor monetário através de traduções de Português-Inglês e Inglês-Português (7599-5046). Para além da besteirada material, atuo como diretora de movimento. Também atuo como facilitadora de oficinas pedagógicas no Brasil, como por exemplo para jovens em aldeias indígenas em MT, no último mês de Agosto, disseminando metodologias do processo criativo, compartilhando estratégias e técnicas desenvolvidas em colaboração com Xavier Le Roy, Marten Spangsberg, Kira O’Reilly, Helena Hunter e Hrafnhildur Benediksdóttir. Desde a última performance, Abscene: A Young Female from Tupinimós Tribe, ‘Water What If Hides’, says ‘I agree’ today, pesquiso  solitude, silêncio e fronteiras no espaço da representação. Atuei como performer, facilitadora de workshops e produtora em plataformas relevantes para minha formação: Haus der Kunst em Munique, Hayward Gallery em Londres, FEM_11 Festival em Girona e My Earth Staglinec na Croácia. Destaco a criação e produção solo de Abscene como performance e oficina para o festival City of Women em Ljubljana na Eslovênia através do Edital de Intercâmbio do MinC. Últimos espetáculos como diretora de movimento: Funk Brasil - 40 anos de Baile e Jumbo - Eu Visito a tua Ausência. Estou caraminholando com Chintia Mendonça e Mayra Martins Redyn uma coisa que ainda não se sabe extamente o que é, localiza-se na região montonhosa Sudeste Brasileira e, para mim, é mais uma coisa sobre tentar não pensar na morte.

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