Leandra Lambert



Foi há muito tempo, quando eles saíram do mar e eu tive que correr para as árvores, tive que me esconder num escuro sem tamanho. Foi muito tempo depois, quando um caminho passou a contornar a praia e eu saí para ver: agora eles também chegavam por terra, e os esconderijos começaram a escassear, se encolhendo, diminuindo. Foi quando as primeiras luzes brilharam nos postes curvados sobre o caminho. Foi quando a ressaca de 1921 levou parte do caminho e trouxe areia e mar para a porta das grandes casas. Eu ouvia tudo, debaixo das varandas. Foi quando caminhei junto àquela família, ventando as franjas das crianças pequenas, que sorriam maresia. Foi quando essas crianças já haviam crescido e passeavam, elegantes, sobre as pedrinhas ondeantes. Foi quando essas crianças envelheceram e morreram, uma delas foi o mar que levou, antes mesmo de envelhecer, na verdade. Ele olhava para o alto, buscando ar. Foi quando, com luvas de areia, toquei seu rosto pela última vez.

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ponto cego de improviso
sobre escura
superfície

ontem
às quatro da manhã
desfiz uma palavra inteira

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o erro me habita (inteiro):
por isso mesmo incompleto
sou de falhas
e impossibilidades
esquecimento e naufrágio

não existiria sem o peso
o tempo
a entropia
a gravidade

mãos ausentes
suspensas
por anzóis

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Hoje inventei um ponto de bordado:
o ponto cego.

Nunca aprendi a bordar.
Sempre saía com os meninos:
pra rua, pro mato, pro mar.
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Fiz uma lista de fracassos.  Sou uma espécie de catadora de impossibilidades. Nessa lista, entre outros itens, consta todo a minha infindável série "Atlântica", que me acompanha desde 2009. Devo continuar tropeçando nela por muito tempo. Dentro dessa série surgiu, em 2011, um texto que fazia parte de uma instalação, sugerindo impossibilidades: era o "Breve Menu de Iguarias das Três Atlânticas". O desejo de concretizar essas impossibilidades foi crescendo. Acabo de dar corpo à primeira dessas impossibilidades, as Luvas de Areia. Abaixo, o breve menu; e, por fim, minha breve lista de fracassos a insistir.

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Breve Menu de Iguarias das Três Atlânticas
Deguste com licores sonoros da região de Atlas

Consomée de maresia
Refresco de ressaca
Porção de ovinhos de sereia pequena
Sushi de sereias graúdas na Barquinha de Iemanjá
Grelhado de noite de sexta no leito de espuma oceânica
Peixe violáceo na crosta de Plêiades e molho de frutos da Hespérides
Doce de pérolas e conchinhas ao caramelo de mormaço
Bolo de cheiro de chuva com calda de pedra de cachoeira
Sorbet de cricrilar e água de rio
Biscoitinhos de orvalho ao canto de pássaros

Experimente também nosso relaxante
                                                                                         Banho de Ostras  

E depois deguste no oceano ou na mata
(se possível…)


Em nossa loja você também pode encontrar:
Luvas de areia
Vestido de águas com maresia estampada em tecido de semi-silêncios brancos
Leque de infinitivos flambados ao vento
Brincos de olhar de gaivota
Pijamas de seda de sal grosso e caquinhos
Travesseirinho de buzinas, vuvuzelas e glossolalia laica de embriagados
Manteau da invisibilidade pedinte
Gargantilha de pedras portuguesas, asfalto, monóxido de carbono e engasgos
Saia godê de esperanças e vaga-lumes dançantes
Lingerie de asas de libélulas e folhas desfeitas
Sapatos de névoa
Chapéu de terra escura
Colar de noite na floresta
Relatos e Desventuras de um Sagui em Fuga
Memórias do Último Pau-Brasil
Grata pela preferência,
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Breve Lista de Fracassos a Insistir
- Escutar o que foi encondido
- Dar voz ao que emudeceu
- Anotar rastros
- Gravar discos que só serão lançados pela janela
- Dizer a noite que cai em signos sobre a mata
- Ouvir as pedras da avenida
- Cantar sob o oceano
- Sentir o sal do gesto na boca do mar
- Molhar fotos
- Salgar papéis e panos finos
- Tirar fotos cegas em filmes velhos com câmeras de brinquedo
- Lembrar olhos de vidro que nunca me dizem a que vieram
- Escrever cartas que não serão enviadas
- Ler em voz alta o que foi escrito - mas escrever também nunca dá conta, é engasgo
- Colecionar ruídos, tanto os sons que não se quer ouvir como as coisas que ruíram, construídas em sua destruição
- Sistematizar essas práticas, no que poderia ser considerado o sucesso de uma lista de fracassos - mas sei que não consigo sistematizar
- Chegar na hora - ou continuar não chegando na hora, sistematicamente
- Encontrar a receita do ovo perfeito - mas o ovo está sempre um tanto informe e fora do ponto - o ovo só é ovo sendo ave e voo
- Atravessar o Atlântico em um navio
- Realizar a performance do naufrágio
- Finalizar meu projeto "Atlântica: o que nunca se completará"

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Hilda Hilst, já velha, dezenas de livros escritos, publicados e elogiados pela crítica, disse: "Hoje sinto-me livre para fracassar".
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O que não se realiza
(r)existe
mais forte
em outro lugar
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Leandra Lambert é catadora de impossibilidades, caminhante dos espaços sônicos, atlânticos, da rua, do tempo e além. Artista-etc, às vezes bem artista, outras mais etcétera. Doutoranda em Artes e praticante de desvios. Compositora-anti-compositora, gosta de usar a voz, palavras existentes ou inventadas, coisas eletrônicas e o que mais aparecer pela frente. Já gravou alguns discos, geralmente lançados pela janela. Realizou a individual "Danças Atlânticas" em 2013. Participou de algumas exposições coletivas - no Rio, em Bergen e em Krasnodar, lugares que nunca conheceu ou entendeu. 
www.leandralambert.net

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